Considerado enquanto conceito, o trabalho de Susi Sielski Cantarino suporta leituras múltiplas. Estas, ambivalentes ou até conflitantes que sejam, não darão conta da carga de mistério en que sua proposta consiste. Ela continuará irredutível
às nossas tentativas de decifração, embora nossas indagações aí encontrem momentos muito ricos e nossa percepção, volta e meia, seja desnorteada pelo surgimento de filões, os mais impressentidos.

 
 
Não estaria errado aquele que identificasse nessa obra os acentos de uma dor pessoal ou coletiva que se transmuta em esperança. Como também estaria certo quem aí divisasse uma analogia entre esse passado tenebroso e uma perturbadora contemporaneidade dos seus piores fantasmas. E seguramente mais certo estaria aquele que, incorporando uma a outra essas vertentes, soubesse captar o quanto de dialética complementaridade as une.  
 

Trata-se de um enigma construído apesar das nossas certezas e acima dos nossos medos, justamente no ponto de interseção entre sua mitologia pessoal e as dores do mundo. Não por acaso leitora de Borges, aqui e ali a autora desse labirinto sutilmente o constelou de pequenas signações - místicas umas, filosóficas outras, históricas ainda outras – que apontam para o Intransponível, como a nos alertar contra a esterilidade de qualquer leitura reducionista. Um enigma que pede ao nosso olhar algo além da simples identificação de suas premissas ou motivações: na verdade o que ele cobra de nós é uma leitura mais universalizante, a única compatível com sua dimensão de obra maior.

 
 

Se considerada enquanto forma, essa etapa atual do trabalho de Susi mantém para com seu conceito uma absoluta simetria, no que respeita a seu caráter proteiforme e à sua multipolaridade. Para passar sua verdade ao espectador, ela mobiliza um vocabulário de sofisticada contemporaneidade. Entre tanto, a esse momentos de invenção e descoberta, onde a releitura, a citação, a paráfrase, a mímese, a apropriação e até a paródia convocam a cumplicidade do olhar mais avisado, somam-se certas referências não menos importantes. Certas referências despojadamente vernaculares e até mesmo arcaizantes à colagem, à dobradura, ao marouflage, ao recamo, tais como eram praticados em suas origens populares, ligadas à artesania das artes aplicadas.

 
 

Essa dualidade que percorre a obra funciona, por vezes, como uma trégua para o olhar, chamado a transitar, prazerosamente, da leitura mais densamente conotada de significados ao mais imediatamente lúdico, onde as leves astúcias dessa artesania exímia se bastam em sua enganosa singeleza. A não perder de vista, porém, que essa gama de notações não está ali por acaso, ou como mero ornato – e muito menos como momentos menores – da obra, mas como que pontuam, em claves diferentes, as mesmas virtudes de uma escrita. Escrita que se exerce como igual maestria do arcaico à vanguarda. Algo como um jazzista ou um atonalista relendo Bach.

 
 

E justamente esse seu duplo registro, que oscila entre a arquitetura complexa e majestosa de cantata e o bordado linear de cantoria, parece representar, no plano visual, aqueles pares de opostos – dor e alegria, esperança e perda – em que Susi se apóia para empreender esse suntuoso inventário da memória de seus afetos, de suas vivências, de suas raízes. Poucas vezes a metáfora de uma artista vestiu, no plano da forma, uma fantasia tão exata.

 
 

Linhas atrás , o termo espectador em vez de contemplador ocorreu-me a respeito da criação de Susi. Isso porque, diante dela, nenhum de nós, mesmo os menos exigentes ou sensíveis, contemplaria tão-somente esse conjunto de propostas tão instigantes. Bem ao contrário, cada um de nós será envolvido precisamente por aquilo que ele tem de espetáculo, no sentido etimológico do termo.

 
 
 

Susi reinventa a sua e a memória dos seus caros numa encenação em que o vivido é retrabalhado. Não na clave ressentida e autoflageladora de uma queixa, muito menos na de um escapismo estetizante. Aqui ela junta sua voz à daqueles que souberam fazê-lo na austera clave do trágico. E justamente por isso, sem dramatizações panfletárias nem sentimentalismos de clichê. Do alto de um domínio de meios rigoroso e inovador, que se impõe já a um primeiro olhar, ela nos oferece mais uma refabulação: serena e transcendente, o que ela nos dá é uma visão de mundo. Visão onde o terrível e o lúdico convivem como cordéis dos quais pendemos todos, manipulados talvez pelo acaso, talvez por uma Ordem que desconhecemos. No pórtico desse universo que sua obra nos abre, parece-nos ouvi-la repetir com Nietzche: Profunda, profunda é a dor do mundo; porém mais profunda é a alegria.

 
   
Ruy Sampaio, Rio de Janeiro, novembro de 2005
 
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